terça-feira, 3 de julho de 2012

Se é para ser arquitecto assim, prefiro ser pedreiro



(Foto: João Carmo Simões)

Passaram-se dez anos desde que fui aluno do Manuel Vicente. Quando o conheci, um ano antes de ser seu aluno, nunca tinha ouvido falar dele. Estava num anfi-teatro para ouvir um arquitecto americano que fazia coisas com toldos («estruturas tensionadas», quero eu dizer), e o Manuel Vicente estava lá para fazer a devida apresentação. Lembro-me de ficar com a ideia de que era alguém de quem o Manuel Vicente era amigo, porque aqueles toldos não eram assim tão interessantes. E passados estes anos, não faço ideia de quem era esse arquitecto americano, e não me ficou na memória nenhuma imagem ou palavra que ele tenha dito. Mas lembro-me perfeitamente da apresentação que o Manuel Vicente lhe fez: cheia de generosidade e provocação (afinal, aquilo eram toldos, convenhamos), dita num inglês impecável (que é raro nos portugueses da geração do Manuel Vicente). A somar a isto, estávamos perante um homem fisicamente debilitado, de sorriso constante, que não se vestia como os arquitectos: no primeiro ano do curso assisti a uma palestra onde nos era explicado que os arquitectos se vestem de uma determinada e acertada maneira, porque a arquitectura é «um modo de estar na vida». O modo de estar na vida do Manuel Vicente, vim depois a perceber, nunca alinhou pelo modo de estar na vida que se convencionou atribuir à elite da arquitectura portuguesa. Sobretudo porque o Manuel Vicente sempre foi um expansionista: de Moçambique à Pensilvânia de Khan, até chegar a Macau, que, anos depois, passou a ser a Macau de Manuel Vicente, o seu desejo nunca encontrou no Portugal continental espaço suficiente. Num certo sentido, a sua energia compara-se à energia de uma criança que nunca se deixa confinar e tem na curiosidade a sua força motriz. Uma curiosidade que o levava a cortar maquetes ao meio, a virar desenhos de pernas para o ar, sempre na procura de alguma coisa que o surpreendesse, que não tivesse visto antes. Pedagogicamente, esta atitude era algo errática, no sentido em que era pouco programática e muito aberta ao exterior (e vulnerável às suas variações de humor), o que fez com que nunca se pudesse construir uma «escola» à sua volta. Por isso é que o seu impacto numa instituição como o Instituto Superior Técnico terá sido muito mais relevante do que noutra escola qualquer. Isso dava-lhe especial prazer, estar no meio dos engenheiros, sempre à procura de confrontos que servissem de estímulo aos alunos. E era um curso novo, uma ideia nova, e tudo o que é novo lhe interessava. Não havia crise, não havia esta crise, e o optimismo ainda podia evitar ser confundido com ingenuidade.


Tudo isso mudou, é claro, e nota-se nesta conversa que a revista Estudo Prévio (da Universidade Autónoma) manteve com o Manuel Vicente. Há muita coisa que eu reconheço, sobretudo esta maneira de explicar a arquitectura através de histórias e episódios, contaminando-a com todas as imperfeições humanas. Mas há um tom de desencanto que não estava lá há dez anos, um desencanto que se sedimentou e que se percebe estar quase a levar ao rancor. Uma desilusão com o estado das coisas presentes, uma desilusão tanto maior quanto a extraordinária capacidade para a invenção do Manuel Vicente. Se é para ser arquitecto assim, diz às tantas, prefiro ser pedreiro.